Acúmulo de Função

 Requisitos para caracterização à luz das decisões dos Tribunais Trabalhistas

 

  1. INTRODUÇÃO

O instituto do acúmulo de função tem gerado acalorados debates na justiça do trabalho, muito já se discutiu e ainda se discute entre juízes, juristas e advogados se há ou não previsão legal para o deferimento da referida verba e quais são os requisitos para a sua caracterização.

Neste escrito, buscar-se-á analisar as questões supra elencadas à luz da jurisprudência jus laboral.

 

  1. CARACTERIZAÇÃO DO ACÚMULO DE FUNÇÃO

O acúmulo de função dentro das relações de emprego ocorre quando o empregado além de exercer as funções para que foi contratado recebe do empregador a incumbência de realização de outras tarefas concomitantes, estranhas ao seu contrato de trabalho e sem aumento de remuneração correspondente.

No que se refere a caraterização do instituto, vale transcrever as palavras do Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Maurício Godinho Delgado (Curso de Direito do Trabalho, Editora LTr, 2011, p. 968-969):

“Haverá acúmulo de funções quando o empregado, originalmente contratado para o exercício de uma determinada função, passa a exercer, conjuntamente com esta, atribuições que não são compatíveis com a função contratada, que se referem a uma outra função, ou seja, não é o simples acréscimo de atribuições que demonstra o acúmulo de funções, pois estas atribuições novas podem se referir à função originalmente contratada. Ou seja, caso não haja prova da função exercida ou não exista cláusula contratual expressa a esse respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal.”

A luz dos ensinamento do saudoso professor Carlos Henrique Bezerra Leite (Leite, Carlos Henrique Bezerra, Curso de Direito do Trabalho/ Carlos Henrique Bezerra Leite. p. 390, – 10. Ed) o contrato de trabalho possui características específicas, tais como a bilateralidade (prestações recíprocas entre empregado e empregador) e trata-se de pacto comutativo (há uma equivalência de prestações entre as partes).

Logo, podemos extrair do articulado acima, que deve existir uma equivalência entre a prestação de serviço e contraprestação pecuniária a ser paga, sob pena de caracterizar o enriquecimento ilícito do empregador à custa do empregado e desvirtuar bilateralidade e comutatividade que permeia o contrato de trabalho.

 

  1. FUNDAMENTO LEGAL

Embora, o texto celetista não trate expressamente sobre o acúmulo de função, o artigo 8º, caput e §1º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) dispõe que o direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho e que dispõe que na falta de disposição legais ou contratuais as autoridades de Justiça do Trabalho decidirão com base na jurisprudência e por analogia:

Art. 8º – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

 

  • 1º O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho. 

 

(Grifo Nosso)     

 

Nesse sentido, os artigos 422 e 884 do Código Civil, impõe o dever das partes em agir sob égide dos princípio da probidade e boa-fé e determina que aquele que, sem justa causa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir o indevidamente auferido.

Senão, vejamos a verba legis:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.

O artigo 13, da Lei 6.615/78, (Lei do Radialista) prevê o direito ao recebimento de adicional de acúmulo de função nos percentuais mínimos de 10%, 20% ou 40%. Reproduzimos o texto legal:  

Art 13 – Na hipótese de exercício de funções acumuladas dentro de um mesmo setor em que se desdobram as atividades mencionadas no art. 4º, será assegurado ao Radialista um adicional mínimo de:

I – 40% (quarenta por cento), pela função acumulada, tomando-se por base a função melhor remunerada, nas emissoras de potência igual ou superior a 10 (dez) quilowatts e, nas empresas equiparadas segundo o parágrafo único do art. 3º;

II – 20% (vinte por cento), pela função acumulada, tomando-se por base a função melhor remunerada, nas emissoras de potência inferior a 10 (dez) quilowatts e, superior a 1 (um) quilowatt;

III – 10% (dez por cento), pela função acumulada, tomando-se por base a função melhor remunerada, nas emissoras de potência igual ou inferior a 1 (um) quilowatt.

Noutro giro, o artigo 468 da CLT aquém dispões que o exercício de atividade estranha a contratada traduz uma novação contratual lesiva, o que é proibido no direito do trabalho.

Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

Deste modo, a luz de uma interpretação sistemática, os artigos 422 e 884 do CC combinados com o artigo 468 da CLT, a vedação legal expressa quanto ao enriquecimento ilícito e se utilizando da analogia ao artigo 13, da Lei 6.615/78, (Lei do Radialista) entendemos ser perfeitamente possível a aplicação do acúmulo de função no direito laboral.

Isto porque, o legislador trabalhista permitiu no artigo 8ª, caput, e § 1º, da CLT que o CC seja fonte subsidiária no direito do trabalho e mais, em caso de omissão legislativa o artigo supra citado impõe um comando imperativo para as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho que “decidirão” com base em jurisprudência e analogia.

Ressaltamos que a jurisprudência trabalhista aceita e aplica o referido instituto como será demonstrado no tópico abaixo.

DECISÕES DOS TRIBUNAIS TRABALHISTA ACERCA DO ACÚMULO DE FUNÇÃO 

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo) em um caso recente julgou no sentido de deferir acúmulo de função a uma empregada que foi registrada como Recepcionista de Caixa, porém, passou a exercer inúmeras funções de líder, passando a supervisionar as demais recepcionistas exercendo algumas atividades típicas da gerência da área, pela ausência de gerente no setor no seu horário de trabalho.

Vejamos:

EMENTA. ACÚMULO DE FUNÇÃO. É devido o pagamento de um adicional nas hipóteses em que é exigido do empregado o exercício de outras funções além daquelas inseridas na esfera obrigacional inerente à sua contratação. Em tais circunstâncias é evidente que haja um acúmulo, proveniente do exercício concomitante de duas funções, substancialmente diversas e que justificam plenamente o recebimento de um acréscimo salarial como forma de contraprestação pelos serviços solicitados, sob pena de enriquecimento ilícito do empregador e de afronta a garantia legal que consagra a justa retribuição pela força de trabalho. (TRT da 2ª Região, Data da publicação: 19/09/2018, Magistrado Relator: Ivani Contini Bramante, Órgão Julgador: 4ª Turma – Cadeira 5, Número Único 1000390-32.2017.5.02.0468

Na mesma linha julgou o Tribunal Regional do Trabalho da 4 ª Região (Rio Grande do Sul) no caso de uma empregada doméstica que passou a cumular o cargo de doméstica com cuidadora de idosos, mas não recebeu contraprestação correspondente:

EMENTA. ACÚMULO DE FUNÇÕES. CONFIGURAÇÃO. Para a caracterização do acúmulo de funções é necessária a comprovação de que o empregado, além de exercer as suas atividades, recebe do empregador a incumbência de realização de outras tarefas concomitantes, estranhas ao seu pactuado e sem o correspondente aumento na remuneração, circunstância verificada. (TRT da 4ª Região, 2ª Turma, 0021399-75.2017.5.04.0027 ROT, em 10/03/2020, Desembargadora Brigida Joaquina Charao Barcelos)

Por fim, o Tribunal Superior do Trabalho reconheceu o acúmulo de função em um caso de um vendedor que também era responsável carregamento e descarregamento de caminhão sem nenhuma contraprestação correspondente.

“AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. RECURSO DE REVISTA REGIDO PELO CPC/2015 E PELA INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 40/2016 DO TST E INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. PRELIMINAR DE NULIDADE DA DECISÃO REGIONAL POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. Não há falar em nulidade do julgado por negativa de prestação jurisdicional quando o Regional aprecia devidamente as questões jurídicas em discussão nos autos, indicando, de forma fundamentada e coerente, as razões do seu convencimento. Agravo de instrumento desprovido . DIFERENÇAS SALARIAIS. FUNÇÃO DE VENDEDOR. COMISSIONISTA. ATIVIDADES DE CARREGAMENTO DE CAMINHÃO E COBRANÇA DE CHEQUES. ACÚMULO DE FUNÇÕES CARACTERIZADO. No caso, a Corte a quo , com base no conjunto fático-probatório dos autos, concluiu que o reclamante faz jus ao pagamento de diferenças salariais por acúmulo de funções, pois, embora contratado para exercer a função de vendedor, remunerado por comissões, também era responsável pelo carregamento e descarregamento do caminhão, sem nenhuma contraprestação. A Corte regional consignou que “as funções de Carga/Descarga e Vendedor são atribuições diversas e independentes. Ademais, no momento que ele estava realizando o carregamento ou descarregamento das mercadorias da empresa, estava deixando de vender e, portanto, impedido de auferir comissões. Esta situação implica em desvirtuamento do contrato e extrapola o direito de comando do empregador fazendo jus à empregada às diferenças pelo acúmulo de atribuições” . Com efeito, a condenação em diferenças salariais por acúmulo de funções é aceita pela jurisprudência quando há uma incompatibilidade entre as atribuições para as quais o empregado foi contratado e aquelas que lhe são imputadas, demonstrando abuso do empregador e alteração contratual em prejuízo do empregado. Esta Corte tem adotado o entendimento de que o vendedor remunerado por comissões que, além de vendas, executa outras atividades para as quais não foi devidamente remunerado, tem direito às diferenças salariais decorrentes do acúmulo de funções. Precedentes. Agravo de instrumento desprovido (AIRR-20022-28.2017.5.04.0461, 2ª Turma, Relator Ministro Jose Roberto Freire Pimenta, DEJT 15/05/2020).”

 

Logo, para que haja a caracterização do acúmulo de função é necessário a demonstração de que as funções cumuladas sejam independentes e diversas.

Ao contrário disso, uma vez que a empregadora, dentro de seu poder de comando, distribuir e orientar a forma de cumprimento das tarefas necessárias, desde que não exija dos empregados serviços superiores às suas forças ou alheios à disposição expressa do contrato celebrado não se caracteriza o acúmulo de função por força do artigo 456, parágrafo único, CLT que dispõe:

Art. 456. A prova do contrato individual do trabalho será feita pelas anotações constantes da carteira profissional ou por instrumento escrito e suprida por todos os meios permitidos em direito.

Parágrafo único. A falta de prova ou inexistindo cláusula expressa e tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal.

 

(Grifo Nosso)

Este inclusive é o fundamento de grande parte da jurisprudência para afastar o acúmulo funcional de um empregado que exercia a função de conferente e também foi designado para fazer a limpeza do banheiro em revezamento com os demais colegas, uma vez por semana de forma esporádica.

Ora, o que podemos extrair da decisão abaixo é que funções compatíveis com a função principal também não configura acúmulo de função.

Senão, vejamos:

 

I – AGRAVO DE INSTRUMENTO DO RECLAMANTE. ACÚMULO DE FUNÇÃO. NÃO CARACTERIZADO. ATIVIDADES COMPATÍVEIS. ART. 456 DA CLT. O Tribunal de origem registrou que o reclamante, contratado para desempenhar a função de conferente, também foi designado para fazer a limpeza do banheiro em revezamento com os demais colegas, uma vez por semana. Nos termos do artigo 456, parágrafo único, da CLT, à falta de prova ou inexistindo cláusula expressa em sentido contrário, entende-se que o empregado obrigou-se a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal, em observância à prerrogativa do empregador de ajustar, adequar e redirecionar as funções de seus empregados ( jus variandi ), desde que as atividades sejam compatíveis com aquelas já exercidas. Dessa forma, o exercício de atribuições inferiores àquelas para os quais foi admitido, realizadas dentro da jornada normal de trabalho, e em revezamento com os demais colegas, não enseja pagamento de diferenças salariais decorrentes do acúmulo de funções. (ARR-10251-44.2012.5.08.0120, 2ª Turma, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 23/05/2019).

  1. CONCLUSÃO
     

Diante de tudo que foi dito podemos concluir que:

A luz de uma interpretação sistemática, os artigos 422 e 884 do CC combinados com o artigo 468 da CLT, a vedação legal expressa quanto ao enriquecimento ilícito e se utilizando da analogia ao artigo 13, da Lei 6.615/78, (Lei do Radialista) entendemos ser perfeitamente possível a aplicação do acúmulo de função no direito laboral.

Isto porque, o legislador trabalhista permitiu no artigo 8ª, caput, e § 1º, da CLT que o CC é fonte subsidiária no direito do trabalho e mais em caso de omissão legislativa o artigo supra citado impõe um comando imperativo as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho quando menciona “decidirão” com base em jurisprudência e analogia.

É importante ressaltar que, não aplicar o instituto do acúmulo de função no direito do trabalho seria premiar a malícia do empregador, que ao invés de contratar um número maior de trabalhadores, passa a distribuir tarefas para seus empregados como forma de suprir suas carências em determinada função, sem a devida contraprestação pecuniária correspondente.

Como diria o Ilustre professor Antero Arantes Martins “o direito não festeja a malícia”, tal conduta patronal deve ser combatida a luz da legislação vigente e embora o respaldo legal não esteja expressamente da CLT, com fulcro na interpretação sistemática apontada acima o acúmulo de função é perfeitamente aplicado nas relações laborais e inclusive é reconhecido pelos tribunais trabalhistas como fora demonstrado no presente artigo.

Contudo, para a caracterização do acúmulo de função deve ser observado os seguintes requisitos: a) A demonstração de que as funções cumuladas sejam independentes e diversas b) Funções compatíveis com a função principal não configura acúmulo de função c) O acúmulo de função deve ser habitual e não esporádico.

 

BIBLIOGRAFIA

 

https://trabalhista.blog/2018/11/22/entenda-como-se-caracteriza-o-acumulo-de-funcoes/, acesso em 22/07/2020.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm, acesso em 22/07/2020.

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Leite, Carlos Henrique Bezerra, Curso de Direito do Trabalho/ Carlos Henrique Bezerra Leite. p. 390, – 10. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação 2018.

Delgado, Maurício Godinho (Curso de Direito do Trabalho, Editora LTr, 2011, p. 968-969 – 10. Ed – São Paulo).

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6615.htm, acesso em 22/07/2020.

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